Venho de uma capital onde os pedaços de carne nascem nas bandejas e frangos felizes usam capacetes enquanto correm para as panelas. Aqui, existe o dia de matar o porco. É um evento social durante o qual meninos tornam-se homens e homens certificam-se de que ainda são. Mulheres não comparecem, mas comentam entre si, com um sorrisinho entre orgulhoso e condescendente: “eles foram matar o porco”. Não são porcos rosados e gordinhos, nem criados livres ciscando. São porcos escuros, peludos, deprimidos, magros. Viveram no fundo embolorado das granjas, em cercados minúsculos e imundos onde não bate sol e até a água dos cochos é pouca e barrenta. A morte para eles é um alívio.
Amigas convidam-me a visitar o rancho distante de uma velhinha solitária, onde há cães que precisam de socorro. Passam fome e maus tratos, comem apenas mandioca crua. (Mas “bichos de fazenda” não vivem na fartura?) Alguns já morreram. É com angústia que nos aproximamos, numa caminhonete emprestada pela prefeitura cujo motorista, de bom humor, ri da loucura dessas mulheres que num domingo de sol vão embrenhar-se no mato atrás de problemas.
Saímos da estrada e o carro cai num vão. O homem fica aguardando socorro, e seguimos a pé, carregando sacos de ração e uma cesta básica. A picada cai em declive, as árvores vão se fechando. De repente não há mais sol, nem mesmo grama, só terra escorregadia. Chegamos a um conjunto de galpões de madeira já preta. Um silêncio assustador nos diz que não há mais cães vivos, mas surgem três guaipecas, doentes de vermes e bicheira, com as costelas aparecendo.
E há galinhas e porcos. Só que não são como as galinhas e porcos das granjas dos filmes e comerciais de TV, aqueles que correm livres e soltos até o dia que encontram o facão, as galinhas e porcos que não faz assim tanto mal comer, pois afinal, “vivem felizes até o fim”.
Este definitivamente não é o sítio da D. Benta. Num cercado bem pequeno estão dois leitões esqueléticos, sem água nem comida. Dentro de um pneu cortado, que deveria servir de bebedor mas está seco, outro porco está deitado – não sabia que porcos podiam ser tão magros -, gemendo, parece não conseguir sair. Viramos o pneu para tirá-lo dali, ele consegue se levantar. Vemos que foi castrado há pouco, tem uma ferida sangrenta. Jogamos ração de cachorro, e todos comem furiosamente; cães, porcos, galinhas… Procuro uma torneira ou um poço para servir água, mas não encontro.
Mas então, são assim as granjas felizes, tão diferentes do confinamento industrial? Tenho visitado outros sítios, ensolarados e floridos, sim. Só que em todos eles, os bichos que devem morrer não estavam andando despreocupados por aí, aproveitando enquanto podem suas pequenas vidas numa inocência abençoada. Porcos, e cabras, e codornas, e coelhos, e outros, eles estavam encarcerados em pequenas prisões sinistras, sujos, sem luz, sem conforto, sem nada… Apartados para sempre daquela alegria verdejante, pior, torturados pela visão dela.
Onde está a dona da casa? Continuamos entrando propriedade adentro, para o galpão do fundo, onde há ruídos. Passamos por mais um porco confinado, a quem jogo mais ração. Minha amiga adverte: “Não vai te impressionar…” Me impressionar com quê? Logo entendo. Lá bem atrás está sentada a dona da casa. Não, nada a ver com D. Benta, mas de repente me sinto novamente com cinco anos de idade. Ela está sentada, desgrenhada, de pernas abertas sobre um banco de madeira. Perto, começa a ferver a água numa panela preta e enorme que só posso chamar de caldeirão, sobre um fogo de chão. Ela segura um grande facão que afia numa pedra. Aos seus pés, um porco sangrado. Foi dia de matar o porco, e ela nos olha, hostil. Nem todo dia de matar o porco é um alegre acontecimento. Pessoas solitárias matam solitariamente, privadamente. Não gostam de testemunhas.
Lá nos limites, mas ainda bem dentro da cidade, todo dia é dia de matar porco. É onde fica o frigorífico, menina dos olhos de qualquer prefeito. Quase todos os veterinários locais trabalham no frigorífico. Durante a manhã, curam cães e gatos no espaço claro do consultório. Durante a tarde, fiscalizam o “abate”. Um deles procura sessões de ioga após jornadas especialmente sangrentas. Outro não deseja ser transferido de setor. “É aqui que me realizo”.
Quando mudei para cá, o cheiro da carne queimada impregnava o ar, incomodava. Agora já não sinto. Na vida, acostuma-se com quase tudo. Mas um dia, sem querer, acabei na rua do frigorífico. Quatro caminhões-gaiola, lotados, aguardavam a ordem para entrar. Fazia muito calor, os porcos – estes bem gordos – salivavam, com sede. Estavam feridos, sangravam, pois no pânico do caminhão cheio, no desespero da viagem sem fim, atacam-se uns aos outros. Contam que alguns chegam mortos.
Penso em pedir água na vizinhança e pelo menos aliviá-los da sede. (Isso não passou num filme?) Logo desisto. Não há tantas garrafas, nem tantas mangueiras, não haveriam tantas mãos. Eles parecem horrorizados com a minha proximidade. E confesso… Confesso que o medo de parecer louca também me afeta. Pondero que aquele que ganhasse água seria atacado pelos outros sedentos. Estupidamente, começo a tirar fotos, observada pelos motoristas que conversavam até há pouco, fumando e contando piadas. Um deles se aproxima.
“Desculpe perguntar, mas por que a senhora está tirando tantas fotos?” Boa pergunta, nem eu mesmo sei. Nada de especial aqui, nada de interesse jornalístico. Não costumo ter presença de espírito, mas acho que dou uma boa resposta: “Porque eu nunca tinha visto uma coisa assim. De onde o senhor trouxe esses porcos?” A velha tática de rebater uma pergunta com outra. “Ah, às vezes a gente trás lá de Mato Grosso”. “Longe né?” “É, uns três dias de viagem às vezes”. “E eles não ganham água nem comida no caminho?” “Quando a gente para no posto às vezes joga água neles.”. Resolvo apelar: “O senhor não tem pena?”. Um segundo de hesitação. Pode ser um segundo ensaiado, uma pausa dramática. “Até tenho… Mas cada um com sua sina, né?”. É.
Uma vez li que no início da implantação da “solução final” nazista, os presos eram mortos em caminhões, cujas caçambas eram câmaras de gás adaptadas, acionadas simultaneamente com o motor. A “carga viva” deveria morrer suavemente, a medida que o andar do veículo fosse liberando o gás. Depois, era só chegar no destino e descarregar na vala. Prático, inteligente. Mas não deu certo. Motoristas, incomodados com o acúmulo da função de carrasco, corriam demais para concluir logo a tarefa. E por isso, a “carga” recebia o gás muito rápido, sofria demais, desesperava, esmurrava as paredes do caminhão. A ideia foi abandonada, por “falha humana”. Desconfio que aqui não haveria esse problema.
Repentinamente, os portões se abrem, meu amigo corre para seu caminhão. Deram ordem para que entrem. Será por minha causa? Acho que não, não sou tão importante, e não há nada de errado aqui, certo? Olho para os porcos pela última vez. Não posso evitar; saber que em breve não estarão sofrendo me consola. Em casa, abraço meus gatos. Quero começar na ioga. (Texto: Liége Copstein, jornalista)/ www.olharanimal.net
8 de agosto de 2014