Ao cuidar de uma criança pequena, é inevitável que façamos uma transmissão consciente daquilo que acreditamos ser o melhor para ela. O que não sabemos é que também transmitimos nosso narcisismo, nosso desejo, nossas angústias e nossas fantasias que guardamos a sete chaves em nossa intimidade inconsciente, mas que definem nossas escolhas em relação à criança. Aquilo que amamos e odiamos em nós mesmos. Esta transmissão se dá a partir do lugar que esse bebê que chegou ocupa em nosso desejo e a partir do modo como ele nos toca e é nomeado por nós.
A grande maioria dos seres humanos não tem questões a resolver a este respeito e está muito à vontade ao realizar esta transmissão, ou, pelo menos, suas angústias e questões não paralisam ou angustiam a ponto de precisar de uma análise. Questões relacionadas ao desejo e à linguagem que nos constituíram e que constituem nossos filhos como sujeitos, seres falantes e de desejo.
Entretanto, pode ocorrer que a gestação ou mesmo o processo de adoção de um filho desperte afetos até então desconhecidos de seus futuros pais. Não está relacionado apenas com a inexperiência de pais de “primeira viagem”. Às vezes, numa família em que nasceram numerosos filhos, um deles pode provocar nos pais algum estranhamento, dando origem a angústias insuportáveis para um ou ambos os genitores ou pais adotivos, colocando em evidência a produção de um excesso que põe em questão o cuidado, a criação e a educação do mesmo.
Isto pode ocorrer com qualquer pessoa que ocupe a função materna ou paterna, independente do sexo, da religião, do partido político, da profissão, do engajamento em causas sociais, e da classe social a que pertence. Neste caso, a escuta psicanalítica tem o seu lugar, não para dar conselhos aos pais ou prevenir algo em relação à criança, mas para tratar deste excesso que se presentificou e que precisa encontrar seu destino singular dentro e fora da relação com o bebê ou com a criança pequena. Ou seja, torna-se necessário encontrar uma solução tanto para os genitores ou pais adotivos, quanto para seus filhos.
O destino dado a esse excesso deve ser singular, o que será cunhado por cada sujeito que se autorize a fazer uma análise, a trabalhar com os conteúdos de sua própria história e esteja disposto a conhecer sua verdade, construindo um saber fazer que venha a seu favor, com e a partir de sua realidade psíquica, sem temê-la.
Os sujeitos humanos têm suas histórias, seus desejos, suas fantasias, angustiam-se, sofrem e buscam soluções para seus problemas, independente de sua classe social. Trata-se de uma questão ética e política que aqueles que sofrem possam, caso queiram, encontrar um analista capaz de ouvir suas angústias, e que possa ajudá-los a tirar consequências a seu favor daquilo que falam e que produzem em uma análise.
Não uma análise prêt-à-porter, com soluções prontas para todos, mas uma análise de um por um, que os autorizem em sua singularidade própria, independente do quanto possam pagar por isto, seja nos centros de saúde, nos hospitais, nos centros especializados ou no consultório particular. (Texto: Enedina Martins, psicanalista clínica). Foto: Divulgação/JC
21 de março de 2014