Náusea Angelo P.Mendes Acordou nauseado naquela manhã. Na verdade, não acordara, apenas levantara, já que passara uma noite praticamente insone, salvo pequenos cochilos. Sabia mesmo é que tivera uma noite muito ruim, tomado de angústia, boca seca, dor no estômago, palpitações e suor frio, sensações que não integravam até então seu escasso repertório existencial, mal chegado aos 26 anos. O motivo, sabia, era um mau pressentimento acerca de sua relação com Laura que, após oito meses, vinha sofrendo um súbito enfraquecimento. O domingo fora um tanto morno, até mesmo chocho, no apartamento de Laura. Ela parecia distante, fria até, mas alegou que estava indisposta, com dor de cabeça, provavelmente decorrente da menstruação que se aproximava. Na hora, aceitou, sem inquietações, as desculpas da namorada, com quem nutria expectativa de uma futura união, pondo fim à ocupação da casa dos pais. Só esperava a convocação do Banco do Brasil e a certeza de uma renda mensal, para avançar nos preparativos para a nova condição de vida idealizada. Só que depois da despedida, com um magro beijo na porta do apartamento, tão logo desceu pelas escadas do prédio foi abatido por uma inquietação repentina. Entrou no ônibus e então começou a remoer percepções acerca dos diálogos daquele dia. Percebeu-a distante desde o momento do encontro, passado das 11 horas, na frente da casa dos sogros. Mesmo o sorriso de Laura, que costumava ser reluzente, lhe pareceu cinzento, estranho, naquela manhã. Analisou-o e definiu-o como burocrático, o sorriso de uma recepcionista entediada. Depois, os diálogos, lembrou agora, tinham sido todos tão fúteis. Logo ela que tinha uma reconhecida identificação com temas alternativos e transversais, e uma visão aguda e crítica da sociedade formal. Leitora contumaz, fã dos poetas franceses, sempre disposta a uma discussão filosófica, naquela tarde aceitou, sem resistência, assistir até ao Domingão do Faustão e, por vezes, flertou até com o Programa do Gugu. E o pior, em silêncio. Mais tarde, rejeitou sutilmente o contato físico, sob alegação de indisposição. Não. Algo estava definitivamente errado. A angústia que o acompanhara por toda a noite cresceu, avançou como uma chaga machucando o estômago e tirando-lhe o fôlego. Tomou um banho rápido, disse para a mãe que precisava comprar um sapato novo e saiu de casa, pouco antes das oito horas. Na esquina, tomou um táxi e se mandou para a casa de Laura. Sabia que seria uma atitude pouco usual, em oito meses de relação nunca fizera isso, e que corria o risco de não ser muito bem recebida. Segunda-feira era dia de labuta e Laura costumava sair para o trabalho por volta de 8h30. Contudo, queria vê-la, assisti-la até, mesmo que não houvesse palavras. Por precaução, estudou uma desculpa, e pensou em alegar que tinha vindo buscar ‘O Muro’, de Sartre, para emprestar ao cunhado, que vinha lhe cobrando há semanas. Precisava vê-la, aliviar aquela dor, aquele sentimento ruim. Passava poucos minutos das oito quando o táxi estacionou em frente ao prédio de Laura, no outro lado da rua de via dupla, separada por um canteiro central, em meio ao movimento de carros que àquela hora, já era intenso. Tirou o dinheiro do bolso, pagou o taxista e aguardava o troco, dentro do carro, quando viu, de longe, através do vidro, a porta do prédio se abrir. Para sua surpresa, saía a própria, Laura, devidamente arrumada, elegante, e com uma expressão tranqüila. Tinha até um sorriso sereno no rosto. Laura estacou, não deixou a porta do prédio se fechar e, na sequência, abriu-a para permitir a passagem de alguém. Um homem, aparência austera, barba hirsuta, maduro. Percebeu um rápido diálogo entre eles e após avançarem alguns metros juntos, deram-se as mãos e se dirigiram a um carro estacionado 20 metros à direita. Embarcaram, fizeram o retorno e passaram, ironicamente, praticamente raspando o táxi. Esteve a pouco mais de 30 centímetros de Laura, que estava virada para a esquerda, e pode divisar seus cabelos castanhos claros, levemente úmidos. Sentiu um suor gelado na testa, a chaga estomacal avançou serpenteando até a garganta, tirando-lhe o fôlego, quando foi interrompido pelo taxista: ‘seu troco, senhor’. (Angelo P.Mendes é jornalista profissional diplomado (UFRGS, 1985), autor do livro de poemas ‘Rosa Paralela” (Grafosul, 1982) e contista amador) – (Fonte-ilustração: imagem pictórica extraída do blog cores-e-nomes.blogspot.com)
21 de outubro de 2011