Existe uma espécie de teimosia idiota recorrente ao longo da história: a superstição de que, se uma pessoa já teve sucesso fazendo isso ou aquilo, você pode recriar esse sucesso fazendo as mesmas coisas. Ledo engano. Esse tipo de comportamento é uma entrave aos que pretendem lograr êxito em seus intentos, particularmente os governantes. Figura sem carisma popular, conhecida pela austeridade e tecnicidade e eleita na aba do chapéu de Lula, a presidente Dilma Rousseff, se quiser de fato realizar algo relevante em seu governo, tem pela frente o grande desafio de sobrepujar seu padrinho político, descolando-o da cadeira do Palácio do Planalto. Ao longo da história, sobram-nos exemplos de figuras obrigadas a aniquilar a imagem de sucesso de seus antecessores para conseguir governar e desempenhar algum papel importante para seus países e seus povos. Em muitos reinos antigos, como Sumatra e Bengala, por exemplo, depois que um rei estava no poder há vários anos, os súditos o executavam. Era uma variação violenta e primitiva de exercitar a renovação. Dessa forma, não permitiam que o governante tivesse tempo de eternizar-se, por suas ações e intenções, e estavam sempre abrindo espaço político às novas ordens que desejavam ascender. Um pouco menos violento, mas não menos obstinado, Alexandre, o Grande, na passional obrigação de suplantar seu pai, o rei Filipe II da Macedônia, dedicou sua vida à ampliação de seu império. Tornou-se uma das figuras mais gloriosas da história da humanidade e o mais célebre conquistador do mundo antigo. Seu pai foi assassinado por um cortesão descontente quando já havia conquistado a maior parte da Grécia. Alexandre assumiu o trono aos 20 anos de idade e já sabia que, para conseguir governar, deveria superar seu pai. Não apenas conquistou novos territórios na Grécia, como marchou com seu exército de 35 mil homens sobre a Pérsia, que contava com 1 milhão de soldados. Alexandre venceu e não parou por ali. Conquistou um império que ia dos Balcãs à Índia, incluindo o Egito e a Báctria (atual Afeganistão). Para a história, os feitos do rei Filipe II passaram a ser medíocres e ele uma figura dissimulada e adepto às bebedeiras e libertinagens. Alexandre, não por acaso chamado de “o Grande”, ao lado de Heféstion, seu fiel companheiro e grande amor de sua vida, conquistou honra e glória jamais vistos. Quando morreu, às vésperas de completar 33 anos de idade, havia reinado por 12 anos apenas, mas tornara-se o mais poderoso dos homens e governante do maior e mais rico império que já tinha existido. O homem virou lenda. A lenda transformou-se em mito. Alexandre talvez seja o exemplo histórico mais contundente de governante que, para legitimar-se de fato e emplacar seu próprio perfil, teve de enterrar a sombra do passado (seja ela boa ou ruim), suprimir a figura do antecessor e estabelecer uma nova ordem. Mas há outros casos emblemáticos. O presidente da China, Mao Tsé-Tung, teve de usar forças repressoras contra a presença do venerável Confúcio na cultura chinesa. John Kennedy chegou à presidência dos EUA logo após a década de 1950, personificada na figura de seu antecessor, Dwight Eisenhower, que fora o primeiro candidato a contratar uma agência de publicidade para sua campanha e precursor do que hoje chamamos de marketing político moderno. Ciente do risco de ficar preso ao passado, Kennedy chegou ao ponto de sequer jogar golfe, já que esse era a grande paixão de Eisenhower. Passou a praticar futebol americano no pátio da Casa Branca, criando para seu governo uma imagem jovial e vigorosa, em oposição à monotonia de seu antecessor ancião. Mas, nem sempre as grandes batalhas são travadas contra a imagem daquele que antecede. Em alguns casos, quando o poder e a glória estão garantidos e se está na plenitude, há o risco de tornar-se arrogante, preguiçoso e inativo, mergulhando no mar turvo de seu próprio ego. Foi o que aconteceu com o dramaturgo estadunidense Tennessee Williams, que após ganhar fama vertiginosamente, passou longos anos no fundo do poço e só depois de chegar ao limite do psicológico, recuperou sua vitalidade e escreveu “Um Bonde Chamado Desejo”, seu mais retumbante sucesso. O mesmo pode ser observado na biografia do escritor russo Fiodor Dostoiévski. Sempre que escrevia um romance de sucesso, pegava todos os lucros e gastava nos cassinos. Só quando ficava novamente reduzido à pobreza, voltava a escrever. No extremo inverso, o mestre espanhol Pablo Picasso aprendeu a lidar e manter o sucesso, mudando constantemente de estilo, reinventando-se e sempre rompendo com aquele trabalho que o consagrara. Dessa forma, alimentava a dinâmica da fama e do poder. No caso da nossa presidente eleita, os riscos são enormes. Apesar de Dilma Rousseff dar sinais claros de que tem estilo próprio, é difícil imaginá-la enterrando a maior herança política deixada por Lula: sua própria imagem. Mas, se o desejo dela for, de fato, governar bem o Brasil, seus primeiros passos devem ser na direção de transformar Luiz Inácio em passado remoto. Esse é o nó que Dilma terá de desatar, tal como aconteceu com Alexandre, o Grande, dias antes da grande batalha contra os persas. Passando pela cidade de Gordium, onde havia uma carroça atada ao principal templo da região com cordas feitas da casca de uma árvore chamada cornácea, tomou conhecimento da lenda, segundo a qual, o homem que conseguisse desatar o enorme e complicado nó – o nó górdio – governaria o mundo. Ninguém jamais havia conseguido. Obstinado, Alexandre pôs-se a tentar. Quando percebeu que não conseguiria desfazer o nó com as mãos, sacou a espada e cortou-o com um só golpe. E foi assim que ele mostrou ao mundo que não seria como os outros e que abriria seu próprio caminho, à sua maneira. Será que a nossa presidente eleita fará isso? Será que Dilma conseguirá cortar o cordão umbilical, esse nó górdio que a levou à Presidência da República? (Helder Caldeira, escritor, articulista e colunista, palestrante e conferencista) www.magnumpalestras.com.br – heldercaldeira@estadao.com.br
18 de novembro de 2010